O Diamante de Milene
A Orquestra do Algarve marcará presença na 5.ª edição do Festival Literário Internacional de Querença (FLIQ), organizado pela Fundação Manuel Viegas Guerreiro desde 2016, que se tem afirmado como um polo de excelência cultural no interior do Algarve, promovendo o diálogo entre literatura, artes e território.
Nesta sua 5.ª edição, agendada para 19, 20 e 21 de setembro de 2025, sob o tema Os Grandes Navios da Terra – inspirado no poema narrativo Alfarrobeira do Caminho de Lídia Jorge –, o festival rende homenagem a esta ilustre escritora algarvia, nascida em Boliqueime, cuja obra, premiada internacionalmente (incluindo o Prémio Médicis Étranger em 2023 e distinções como Commandeur de l’Ordre des Arts et des Lettres em 2025), explora com profundidade temas como a memória, a identidade e o enraizamento na terra.
Nesta celebração, que conta com o Alto Patrocínio da Presidência da República e parcerias com instituições como a Fundação Calouste Gulbenkian e a Câmara Municipal de Loulé, destaca-se a encomenda de uma obra original ao compositor João Nascimento, doutorado em Composição pela Universidade de Évora e figura proeminente da música contemporânea portuguesa. Nascido em 1957 na Marinha Grande, Nascimento, aluno de mestres como Eurico Carrapatoso e António Pinho Vargas, tem uma vasta produção que cruza tradição e modernidade, frequentemente inspirada no ethos alentejano e em narrativas poéticas.
Esta peça, concebida para integrar o concerto de abertura do festival, representa não só uma ponte entre a prosa de Lídia Jorge e o som, mas também um contributo para a vitalidade das artes no Algarve rural, alinhando-se aos valores de desenvolvimento cultural e sustentável defendidos pela Fundação desde a sua criação em 2000.
Este artigo explora o interesse do compositor nesta encomenda, revelando como a obra de Lídia Jorge – com o seu olhar sensível sobre as raízes e as transformações sociais – inspira uma criação musical que ecoa os "grandes navios da terra", navegando entre o passado e o futuro da identidade portuguesa, pela voz do próprio compositor, João Nascimento.
O Diamante de Milene, por João Nascimento
Musicar um livro.
Foi esse o desafio.
Ler um livro de Lídia Jorge, O Vento Assobiando nas Gruas, e escrever uma pequena obra musical que resultasse do provir imaginário do compositor.
Duas realidades se alinham.
Uma é a da leitura, que determina uma narrativa objetiva. Com significado, expondo contextos variados e ambientes específicos, dá vida a personagens que acompanharão o leitor pela viagem do folhear.
A outra é a música, que lida com sons. E os sons não possuem significado. Apenas conduzem, pelo fruir da sua organização, ao fantástico de uma realidade, que no interior de quem a experimenta, se estabelece. Realidade pessoal e na sua essência, intransmissível.
A música não tem significado mas remete para sentimentos convencionais, para pensamentos objetivos determinados pelos seus gestos e no efeito emocional que cria a fluência das suas vibrações.
O sentido estabelece-se pelo imaginário.
O imaginário dos sons e, de igual modo, o imaginário da leitura, que sendo objetiva, remete ainda para a idealização dos elementos descritos. Casas, ruas, personagens, ambientes.
E é daí que surge o título da obra. O diamante, aquele lugar que fascina o leitor, na dinâmica social de uma família em que prevalece a harmonia de um humanismo contagiante; e a personagem principal, Milene, a menina de alma pura.
A partitura foi acontecendo, tomando forma à medida que a narrativa se desenrolava. Sem preconceitos estéticos, sem preocupações estilísticas, simplesmente fluiu, em simultâneo com a leitura e com a emoção então criada.
Escrita para orquestra clássica, com a formação tradicional, divide-se, esta obra, em três seções estruturais, assumindo, grosso modo, uma forma ternária.
A primeira seção caracteriza-se pela construção do um tutti orquestral, por sobreposição de linhas instrumentais ascendentes em registo, seguindo-se um segundo período marcado pelo aparecimento de um tema, tocado pelas cordas e reforçado pelas madeiras.
A segunda seção, seção central da obra, incorpora vários períodos, onde os materiais vão sendo desenvolvidos. Inicia-se pela apresentação de um motivo apogiaturado, tocado pela flauta e pelo oboé e pontuado pelas cordas. Depois, sobre pedal dos violoncelos e contrabaixos, desenvolve-se, posteriormente, um curto contraponto conduzindo à reapresentação do motivo, alternado entre cordas e madeiras.
Posteriormente, o motivo reaparece nas cordas graves, desenvolve-se por todo o naipe e também nas madeiras, dando origem a um curto bloco homorrítmico, num diálogo entre cordas e sopros, que gradualmente se irá diluir em conjuntos de notas longas, texturas contínuas, que conduzirão à cadência que encerrará o período.
Segue-se um outro pequeno bloco separador, protagonizado pelas cordas, pontuado pelos metais e madeiras, em dinâmica muito forte, que guiarão ao reaparecimento do motivo inicial da flauta e oboé, agora tocado pelo oboé e fagote.
Este bloco mais contrapontístico termina com um gesto ascendente e em crescendo, nas cordas, conduzindo a um outro pequeno bloco separador, pontilístico, que apresentará a terceira seção da obra, que é a reexposição do material inicial e que se vai diluindo até chegar a um pequeno gesto em stacatto, nota de valor muito curto, processo pelo qual termina a obra.
Permanece a essência, o assobio do amor, que parecendo inacessível, perdurará sempre na determinação do propósito de o manter.
O diamante é puro, como pura é alma de Milene, e por ser puro, resistirá.
No final, a procura daquele culminar, que para além da dor que a ignorância humana cria, e das contingências dos seus contextos, se vislumbra na celebração que deverá ser a vida, pela maravilhosa brevidade com que nos contempla.
João Nascimento,
Ilhas de Arraiolos,
1 de setembro de 2025